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Responsabilidade civil dos fundos de investimento e de seus administradores

Nos últimos anos, o mercado financeiro brasil

Nos últimos anos, o mercado financeiro brasileiro tem visto um crescimento exponencial das corretoras de valores independentes, como a XP Investimentos e a Easynvest. Com o suporte de grandes investidores e com plataformas digitais que oferecem os mais diversos tipos de produtos para investimento, essas corretoras vêm ganhando cada vez mais a cobrança dos consumidores e ameaçando a hegemonia dos bancos tradicionais. [1]

Essa recente ascensão das corretoras tem beneficiado muito os fundos de investimento. Esses consistem em um tipo de aplicação financeira que reúne recursos de um conjunto de investidores, permitindo o investimento em uma variada cesta de ativos, em diferentes mercados.

Essa cesta pode englobar Títulos de Renda Fixa, Títulos Públicos, Títulos Cambiais, Derivativos, Commodities, Ações, entre outros, razão pela qual os fundos possuem classificações distintas, a depender das aplicações que predominam na carteira e das estratégias que adotam [2]. De acordo com a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA), até novembro de 2019 a indústria de fundos de investimento registrou a entrada de R$ 228,1 bilhões, o que correspondeu a um crescimento de 230% em relação ao mesmo período de 2018 [3].

Com a edição da Lei 10.303/2001, que entrou em vigor em 04/03/2002, as cotas dos fundos de investimento passaram a ser classificadas obrigatoriamente como valores mobiliários, fato que imputou à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a competência exclusiva para regular a matéria. Atualmente a Instrução CVM no 555/2014 é o regramento vigente, sendo aplicado a todo e qualquer fundo de investimento registrado perante o órgão.

Para a criação, manutenção e devido funcionamento de um fundo de investimento é necessária a existência de alguns profissionais com funções específicas, definidas na regulação aplicável. Entre tais profissionais destacam-se o administrador e o gestor do fundo.[4]

A criação de um fundo de investimento depende de um administrador. Somente uma pessoa jurídica autorizada pela CVM a realizar administração de carteira pode ser administrador de um fundo de investimento. O administrador é responsável pelo funcionamento do fundo, pelos seus aspectos jurídicos, pela prestação de informações à CVM e pela defesa dos interesses dos investidores (cotistas). É sua função elaborar e divulgar as informações periódicas (o valor das cotas informado diariamente) e eventuais (os fatos relevantes ou comunicados aos cotistas).

O gestor, por seu turno, também precisa ser registrado junto à CVM; contudo, pode ser uma pessoa jurídica ou física. Possui a função de acompanhar o mercado e de decidir quais investimentos serão efetuados com o dinheiro aplicado pelos cotistas, sempre se baseando nos objetivos e na política de investimento constantes no regulamento do fundo.

Busca definir os melhores momentos de compra e venda de ativos financeiros, seleção de papéis e alocação, continuamente tendo em vista a perspectiva de retorno, o nível de risco e a liquidez de cada papel. Por vezes tanto a administração como a gestão de um fundo de investimento se concentram na mesma pessoa jurídica.

O aumento pela procura por fundos de investimento gera uma consequente elevação no número de conflitos envolvendo tais aplicações. Entretanto, por vezes, os investidores e seus representantes demonstram certa insegurança e incerteza ao proporem ações condenatórias visando a reparação de danos oriundos de investimentos realizados, principalmente no que tange à denição e indicação da composição do polo passivo, ou seja, da indicação do responsável pelo dano sofrido.

A responsabilidade civil surge com a violação de qualquer tipo de direito, seja ele absoluto ou relativo, que cause dano injusto à uma vítima. Tal fato gera um dever jurídico sucessivo, o de indenizar. A noção de dano implica perda, uma lesão a um patrimônio, compreendido em sentido amplo como conjunto de bens e direitos de que seja titular a pessoa afetada pela ação de um terceiro. No entanto, essa lesão deve vir qualificada, pois deve ser originada a partir de uma conduta antijurídica sobre o patrimônio de outrem. Por trabalhar com situações “traumáticas”, a responsabilidade civil é considerada por muitos a parte patológica do direito obrigacional. Ainda, a responsabilidade civil está diretamente relacionada com a natureza jurídica do causador do dano.

A natureza jurídica dos fundos de investimento sempre causou incessantes polêmicas e discussões doutrinárias. Em que pesem inúmeras redações normativas e regulatórias referirem-se aos fundos como condomínios, nunca restaram dúvidas de que os fundos de investimento possuíam algumas características, como a possibilidade (garantida pela CVM) de realizar operações societárias de fusão, cisão ou incorporação, que não permitiam a aplicação indistinta de todos os dispositivos legais que disciplinam os condomínios (razão pela qual, inclusive, posteriormente, a lei da Liberdade Econômica – lei no 13.874/19 – acrescentou ao Código Civil, no Livro III do Direito das Coisas, o Capítulo X, nele prevendo no art. 1.368-C caput que: a) “O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza.“; no § 1o que: b) não se aplicam ao fundo de investimento as disposições que versam sobre os condomínios – arts. 1.314 ao 1.358-A; e, ainda, no § 2o que: c) compete à CVM disciplinar o que seria um “condomínio de natureza especial”).

Mesmo diante das incertezas que circundam a natureza jurídica dos fundos de investimento, em setembro de 2019, no julgamento do REsp no 1.834.003 – SP, de relatoria do Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu que, embora destituídos de personalidade jurídica, aos fundos são imputados direitos e deveres, tanto em suas relações internas quanto externas, e que não obstante exercerem suas atividades por intermédio de seu administrador/gestor, podem ser titulares, em nome próprio, de direitos e obrigações.

Analisando tal decisão do STJ resta evidente a possibilidade da responsabilização civil dos fundos de investimento por eventuais danos causados aos investidores. Contudo, saber se o fundo é de fato o responsável pelo dano, apresenta-se como crucial para a devida promoção e êxito da ação. No mesmo julgamento, o Ministro Villas Boas indicou que a responsabilidade civil imputada ao fundo de investimento deve ter relação com sua conduta perante os cotistas, relação esta que grande parte da doutrina entende como de mandato, regulada, portanto, pelos arts. 663, 675, 679, 668 e 682, I, do Código Civil. O mandatário age em nome e a favor do mandante e por isso responde o mandante pelos atos que praticou.

Ocorre, todavia, que o STJ também indicou que se a ação diz respeito a um descumprimento de atividade/função/obrigação específica do administrador/gestor, que é mandatário do próprio fundo de investimento, deve o administrador/gestor figurar no polo passivo da demanda, uma vez que a responsabilidade está fundada em sua atuação em nome próprio, na condição de administrador/gestor, e não ao desempenho de funções que se identificam com os cotistas.

Para o estudioso Eduardo Montenegro Dotta, da instrução CVM no 555/2014 extrai-se que o administrador e o gestor de fundo de investimento possuem obrigações de três ordens:[5]

  1. a) Obrigações fiduciárias (ligadas à confiança que o investidor deposita nos prestadores de serviços – administrador e gestor – enquanto seus representantes junto ao mercado e guardiões de seus recursos);
  2. b) Obrigações administrativas (ligadas à organização dos negócios e do dia a dia do fundo e como interlocutor dos investidores junto à CVM);
  3. c) Obrigações de empenho (ligadas à credibilidade do administrador e do gestor no emprego dos melhores esforços e na busca das melhores condições de mercado para o investidor. Obrigações estas mais ligadas atualmente à performance do gestor de recursos.).

Importa mencionar, todavia, que em janeiro de 2020, no julgamento do REsp no 1.724.722 – RJ, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, o STJ indicou que para a configuração do descumprimento de obrigação específica do administrador/gestor de fundo de investimento não basta a ocorrência de uma perda ou uma redução no patrimônio do cotista. Para tanto, é necessária a comprovação de que o respectivo prejuízo tenha sido precedido por um fato antijurídico cometido pelo administrador/gestor, que constitua a sua causa. Isso ocorre pois, conforme visto, o administrador/gestor não se compromete a entregar ao investidor uma rentabilidade contratada, mas apenas empregar seus melhores esforços – portanto, uma obrigação de meio – no sentido de obter os melhores ganhos possíveis frente a outras possibilidades de investimento existentes no mercado.

Para o STJ a efetiva responsabilização do administrador/gestor depende da comprovação de má-gestão (originada de culpa em sentido estrito – imperícia ou negligência), consubstanciada por arriscadas e temerárias operações com o capital do investidor (uma vez que tal fato ultrapassa a razoabilidade prevista no art. 14, §1o, II, do CDC, a jusfiticar a excludente do nexo de causalidade), ou da existência de fraude financeira por parte do administrador/gestor. Isso porque há muito a corte consagrou a presunção de conhecimento pelo homem-médio (consumidor-padrão) acerca dos riscos normais e previsíveis ínsitos aos fundos de investimento, tanto para grandes ganhos como para perdas consideráveis.

Ante tal interpretação conjunta dos precedentes trazidos, cumpre ainda informar que o Ministro relator do REsp no 1.834.003 – SP, no final de seu raciocínio quanto à legitimidade passiva dos administradores, indicou em seu voto que, para aferir as condições da ação, a jurisprudência do STJ tem utilizado da teoria da asserção, isto é ter como base as afirmações deduzidas na petição inicial.

Portanto, diante dos recentes precedentes do STJ, percebe-se que o conhecimento das obrigações específicas do administrador/gestor e do próprio fundo de investimento é crucial para a definição da causa de pedir indicada na inicial, de modo a permitir a precisa idenfiticação do causador do dano ao investidor e proporcionar uma maior chance de êxito na busca pela reparação dos prejuízos sofridos por este.

Referências

[1] https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2019/07/29/corretoras-digitais-disputam-investidores- com-bancos-tradicionais.htm
[2] https://www.xpi.com.br/investimentos/fundos-de-investimento/
[3] https://www.anbima.com.br/pt_br/informar/relatorios/fundos-de-investimento/boletim-de-fundos-de- investimentos/entrada-liquida-de-recursos-em-2019-na-classe-acoes-supera-a-de-multimercados- 8A2AB2916EB487CD016ED7656678570A.htm
[4] https://www.infomoney.com.br/guias/fundos-de-investimento/
[5] Responsabilidade civil dos administradores e gestores de fundos de investimento, São Paulo: Almedina, 2018, pág. 117.


Originalmente publicado por Jota.
Em 9 de março 2020.
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